terça-feira, 28 de julho de 2015

Labirinto de galhos


Henrique não via padrões. Conheci-o por acaso, numa fila de espera longa o suficiente para conversas. Nunca soube o apelido dele nem muito mais acerca da sua vida. Apenas isto: chamava-se Henrique e não via padrões, tinha cabelo escuro, olhos claros, uma pequena cicatriz no queixo e, de resto, estava completamente na média.

Durante a conversa, que já não me lembro de como chegou a este tema, reparei que os olhos dele, profundamente azuis, se emocionavam com cada palavra. Não chorou, nem ficou com lágrimas nos olhos, mas o olhar foi perdendo o foco, e as pálpebras foram-se semicerrando, numa tristeza silenciosa a gritar-me aos ouvidos.

O que mais o incomodava era não ser como as outras pessoas, sempre a ver padrões em todo o lado, mesmo quando eles não estavam lá. Henrique estava condenado a não ver esses mesmos padrões, nem que lá estivessem. Foi a vários médicos e todos lhe fizeram as mesmas perguntas, numa tentativa de despistar doenças conhecidas, mas as respostas nunca eram as esperadas.

Como resultado, Henrique habituou-se a receber palmadinhas nas costas e receitas de antidepressivos acompanhadas de "vá lá homem, descanse um pouco que isso passa, não se esqueça de tomar os comprimidos, adeus, adeus, as melhoras".

Mas a história que me interessou foi outra. Henrique lembrava-se de, em criança, quando ainda tinha amigos com quem brincar, dar de caras com uma árvore gigantesca no meio do mato.Ele frisou bem que todas aquelas árvores eram grandes, mas que aquela era particularmente enorme. Os seus amigos ignoraram-na, mas ele olhou para cima e sentiu uma estranha vontade de a trepar.

É que no meio dos galhos e das folhas verdes, que começavam lá bem no alto, Henrique viu um labirinto. Um ténue padrão de Natureza inconsciente que se tinha limitado a crescer como muito bem lhe apetecia e o ambiente em seu redor o ditava. Um padrão nascido da confusão aleatória dos ramos de uma árvore.

Miúdo que era, Henrique fez o óbvio. Deixou-se fascinar e trepou a árvore. Arranhou-se, cortou-se, esfolou-se, enfim, sofreu muito, e ainda antes de chegar aos primeiros ramos. Esses tornaram-se em paredes labirínticas que se desenrolaram com a sua subida, contorcidas o suficiente para Henrique ver neles um labirinto, mas não emaranhadas o suficiente para que fosse preciso ter medo.

O que ele fez, disse-me ele enquanto estávamos na fila, mais de uma vintena de anos depois dos acontecimentos, foi trepar o mais rápido possível, sem ligar aos perigos, e assim chegar ao topo da árvore. Ainda ia a tempo do pôr-do-sol, que viu, maravilhado, e após o qual desceu, refazendo o seu caminho no estranho labirinto.

Foi com a noite a fechar-se sobre ele e os seus amigos há muito fugidos para as respectivas casas, que Henrique percebeu que tudo batia certo. Da mesma forma que os cegos só vêem uma cor, preto, e os surdos só ouvem um som, silêncio, ele só via um padrão: a ausência de padrão. Henrique via o caos.

Terminou assim a história, de forma abrupta, pois chegara a sua vez de avançar para a caixa e pagar. Arrumou as compras em sacos, e disse-me, antes de se ir embora, que continuava a querer ser normal.

Nunca mais o vi.

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Rui Bastos. Com tecnologia do Blogger.