quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Escadas para todo o lado



Sandra tem acordado todos os dias, desde que se lembra. Quando se tem um tumor no cérebro do tamanho de uma bola de golfe, isso é uma vitória. Fraca, constantemente enjoada e deprimida, mas acordada.

Os médicos deram-lhe algumas semanas de vida, quando a diagnosticaram, mas ela já passou os três meses desde aí. É uma lutadora, a Sandra, incapaz de aceitar que vai morrer mais cedo do que alguma vez tinha imaginado. Luta com toda as forças contra o cancro que lhe consome a vida, mas é lutar sozinha contra um exército.

Quem a conhece não pode fazer outra coisa que não vê-la a definhar. O cabelo que cai, a pele que amarela, os lábios que secam, os olhos que embaciam, a Sandra que se perde cada vez mais numa teia de dor de sofrimento e se esquece de ser quem era, a intrépida jornalista com sentido de humor.

Era Sandra Faria, agora é Sandra. Era jornalista, agora é doente. Tinha um emprego, amigos e uma vida feliz, agora tem cancro. Não era casada nem andava enrolada com ninguém, mas sempre disse que era difícil encontrar a mulher certa para essas coisas. Saía à noite para se divertir, e de vez em quando engatar uma outra rapariga jeitosa, agora sai à noite até à casa de banho, para ir vomitar.

Tudo isto, e continua a acordar todos os dias, com a mente intacta, ainda que aprisionada. Já nem sabe porque é que se recusa a morrer, mas é o que faz. A afiada gadanha pende-lhe sobre o pescoço todos os segundos de todos os dias, e Sandra, débil, quase incapaz de se mover, consegue mantê-la longe. Tão longe quanto possível.

O tumor não cresceu de um dia para o outro, mas foi de um dia para o outro que foi descoberto. Num dia uma forte dor de cabeça numa viagem com amigos, no outro um médico a dizer-lhe para se despedir da família. Sandra pediu uma segunda opinião, e uma terceira e uma quarta, e por muito que sentisse que devia continuar a pedi-las até alguma ser do seu agrado, ouvir quatro vezes "algumas semanas de vida, na melhor das hipóteses" foi o suficiente para ficar convencida.

Dedicou alguns dias a tratar dos seus assuntos, disse aos amigos mais próximos o que se passava, explicou aos médicos que tinha pouca família e que a que tinha, não lhe interessava, e começou os tratamentos.

Três meses depois, continua a acordar. Continua viva, contra todas as esperanças clínicas, e por muito que os dias lhe pareçam tão iguais e sofridos que se ache no Inferno, ou pelo menos em algum tipo de Purgatório.

"Podias ter ligado."

A voz, grave, levemente rouca, dura, só pode ser de uma pessoa.

"Pelo menos ao teu pai, Sandra."

Ela não quer saber. Não o quer ali. Mas também não tem forças para o mandar embora. Olha para ele, mortiça e baça, deixa-se embalar pelos vários apitos hospitalares que lhe enchem o quarto e fecha os olhos. Ele, Luís Faria, pai, não chega a entrar no quarto. Percebe a mensagem e vai-se embora. Só chora no carro, durante alguns segundos, e depois faz por esquecer a filha que nunca quis e que já não o quer.

"Como é que te sentes?"

A voz, grave, nada rouca, amável, pode ser de qualquer pessoa.

"Não me conheces, mas... Temos que ter uma conversa importante."

Ela não quer saber. Nem sabe se o quer ali. Mas também não tem forças para o mandar embora. Abre os olhos e vê-o, jovem, com uma cicatriz profunda a começar no canto direito dos lábios e a descer pelo pescoço abaixo até às suas costas.

"O meu nome é Miguel."

Não o conhece. Mas a nuvem que lhe tolda a mente começa a dissipar-se lentamente. Os olhos brilham uma vez mais e ela é toda ouvidos. Só não sabe é porquê.

"Tens sonhado com escadas?"

A pergunta é estranha, mas a resposta é óbvia. Quase que se lembra de uma grande casa banhada pelo Sol e com escadas de pedra. Pensa e vê um padrão, um que se repete todas as noites desde que sabe que tem uma bola de golfe a matá-la lentamente, por dentro. Escadas, um bocadinho por todo o lado e que vão dar a todo o lado. Sem saber como, nem porquê, ainda a estranhar aquele homem, mas a confiar em Miguel, Sandra responde.

"Sim."

0 comentários:

Enviar um comentário

Rui Bastos. Com tecnologia do Blogger.