quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Peças como paredes

Encaixei a última peça e virei-me satisfeito. Completar um puzzle é como chegar ao fim de um labirinto: parece nunca mais acabar e de repente ali está a saída, a última peça. Quase sem se dar por ela.

Saí da sala, apressado. Nunca ficar demasiado tempo com um puzzle, foi o que meu pai sempre me disse, especialmente com um que esteja acabado, foi o que a minha mãe me disse uma vez.

Só quando estava na faculdade é que me apercebi que a relação que eles tinham com puzzles não era normal. Eu achava que toda a gente os fazia noite dentro, de forma quase ritual, e englobava toda a família naquela actividade silenciosa e meticulosa.

Por algum motivo consegui não trazer o assunto ao de cima durante os anos de escola, mas na faculdade, a viver longe de casa, foi impossível não o fazer. Quis convidar os meus colegas que também estavam deslocados para fazermos puzzles noite dentro, pelo menos duas vezes por semana, "para não estranharmos demasiado".

Acharam estranho. Riram-se. Nunca mais me falaram. Só então é que eu achei estranho. Tentei fazer perguntas aqui e ali, o mais discretamente possível, e integrei-me num grupo de amigos, sem dificuldades de maior. Fui fazendo os meus puzzles, sozinho. E um dia consegui: estava em casa duma amiga, com mais três pessoas, e ela desafiou-nos a fazer um puzzle antigo e supostamente impossível que ela tinha por lá.

Nada de extraordinário: mil peças, uma paisagem outonal, com grande parte da imagem coberta de folhas todas nos mesmos tons. Não era fácil, mas não era difícil. Na pior das hipóteses, trabalhoso. Mas fiquei entusiasmado. Escolhi uma peça e mantive-a na mão durante todo o tempo, para controlar a altura em que acabávamos o puzzle. Tentei não me exibir demasiado, mas todos notaram a minha habilidade.

E foi então, com quase todas as peças nos lugares, que percebi que nem todos os puzzles ganhavam vida. A minha família montava-os de forma ritual porque eram de facto momentos de ritual. A última peça libertava o puzzle, que se escondia num dos recipientes que o meu pai tinha sempre por perto.

Pus a última peça. Nada aconteceu. Rimo-nos, bebemos e comemos mais qualquer coisa, dormimos por ali e no dia seguinte a vida retomou como era costume. Demorei várias semanas até ter coragem de fazer a pergunta aos mais pais, "Porque é que nunca me contaram?", pelo telefone.

Silêncio do outro lado.

"Tens feito alguns?", perguntou a minha mãe, com a voz mais séria que alguma vez tinha ouvido nela.

"Claro que sim."

"E tens feito tudo?"

"Sim, todos os rituais.", respondi, com bastante ênfase na última palavra.

"Então abre um dos frasquinhos."

E desligou a chamada.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

sábado, 15 de agosto de 2015

De certeza?

Ele salta, ele corre, ele consegue evitar o obstáculo e ele marca golo! É GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO-

"A sério?"

-OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLOOOOOOOO!!!

"Tu alguma vez me vais ajudar?"

Já te ajudei. Ajudei-te a descobrir essa malfadada cruz que agora seguras bem alto e contemplas com os teus olhos escuros a indicar uma dose massiva de idiotice. Suspiras, por motivos que escapam a qualquer pessoa minimamente racional, e encolhes os ombros, como quem se resigna. O que era de esperar, já que és um perdedor.

"Vamos para casa."

Caminhas apressadamente para casa, no teu passo feminino e para lá de ridículo. Consegues ultrapassar a maior parte das pessoas na rua, numa espécie de corrida ridícula em que és o único participante que tem consciência que participa. Chegas a casa, entras, atiras a cruz de prata para cima da mesa, sem qualquer cuidad-

"Não sejas assim."

... atiras a cruz de prata para cima da mesa, com um super cuidado super cuidadoso, como se fosses um elefante a tentar pintar um ovo de codorniz.

"Tens sempre que exagerar? Podias ser mais simpática."

Tu é que pediste. E és tu que agora te sentas no sofá, completamente estafado.

"Por acaso. Mas não me faças dormir."

De certeza?

"Sim."

Diz ele, antes de fechar os olhos e começar a ressonar bem alto. Idiota.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

A Cruz de Prata

Os acontecimentos passados atormentam-me o juízo como se de um salgueiro enraivecido se tratasse. O vento que abana esse salgueiro é silencioso, mas mortal, como mortais somos todos nós. Matamos e morremos e morremos e matamos, como mortais e mortais que somos. A grande dúvida que pesa sobre os meus ombros é a mesma que pesa sobre os ombros da Humanidade como um todo, a dúvida sobre...

"Pára de ser tão dramática."

Ahem, a dúvida sobre o verdadeiro motivo da nossa existência enquanto seres à face desta Terra que nos foi emprestada pelos deuses sem nome e pelos deuses com demasiados nomes. Qual é a razão de todo o sofrimento porque passamos e que não tem igual em nenhuma dimensão alternativa que...

"Já chega, vá."

Pronto, pronto, qual é o teu problema hoje?

"O principal é que estou a ficar farto de te ouvir!"

E?

"Bem... Preciso de ti."

Ai sim? Primeiro é para me calar, e agora já precisas de mim... É sempre a mesma coisa, deves pensar que te safas com essa brincadeira durante muito tempo.

"Nunca disse para te calares."

Não quero saber.

"Vais-me obrigar a implorar?"

Talvez.

"Preciso mesmo de ti, vá..."

Diz...

"Tens que me narrar como deve ser, hoje."

O que é que queres dizer com isso?

"Não quero das tuas brincadeiras do costume, hoje preciso mesmo que te limites a narrar normalmente."

Mas...

"Por favor!"

Pronto. Está bem. Se tem de ser.

"Óptimo. Hoje vamos descobrir a Cruz de Prata."

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Diomira - As Cidades e a Memória 1

Seeing Calvino

“…cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas pavimentadas a estanho, um teatro de cristal e um galo de ouro que canta no alto de uma torre todas as manhãs. […] quem lá chegar numa noite de Setembro […] lhe apetece invejar os que agora pensam que já viveram uma noite igual a esta e que então foram felizes.”

Ainda a alguma distância da cidade, e graças ao brilho alaranjado do sol poente, já sabia onde ela ficava. Conseguia ver as cúpulas de prata a brilharem, à distância, e sabia a que número chegaria se as contasse: sessenta. Eram exactamente sessenta, as cúpulas que se erguiam, de Diomira, e que identificavam a cidade, muito antes de qualquer viajante lá chegar.

Diomira, a cidade que parece uma manta de retalhos. Diomira, a cidade que reúne deuses de várias regiões e religiões. Sem olhar a diferenças nem desavenças, acolheu-os a todos, em tempos, permitiu que várias culturas se instalassem, e não se opôs a que cada uma trouxesse os seus próprios deuses.

Vindas de todos os lados, essas culturas chegaram a Diomira quando ela era ainda um mero pedaço de terra, sem edifícios, sem ruas, sem cúpulas de prata a brilhar ao sol, apenas um grande descampado que atraiu aquele heterogéneo grupo de pessoas.

E foi com um silêncio feliz, feliz de chegarem ao destino que não sabiam que o era, que aceitaram a presença uns dos outros, e concordaram que ali iriam erigir Diomira, que há muito esperava por eles.

Oh!, o que eu não dava por ter visto! Por ter visto os dias, semanas, meses e anos que se seguiram, em que tantas culturas e raças se juntaram e trabalharam lado a lado. Deve ter sido um regalo para a vista, e para a alma, ver os povos habituados ao calor sufocante dos desertos arenosos do Sul a ensinarem como fazer roupa mais leve, e mais apropriada, aos povos dos desertos gelados do Norte. Ver sessenta povos, sessenta culturas, sessenta fés, reunidas num só sítio, e através dessas fés, ao mesmo tempo individualizadas e fundidas numa só, a trabalhar por um objectivo comum… Que visão! Que visão!

Mediante combinações apenas pensadas, que não precisaram de ser ditas, por parecerem demasiado óbvias aos futuros diomirenses, construíram sessenta cúpulas de prata, exactamente uma em representação de cada uma das suas culturas, e adornaram as ruas, pavimentadas de estanho, com estátuas de bronze de todos os seus deuses, e até mesmo, num acto de verdadeira boa-fé, de deuses que apenas conheciam de nome, de outros povos que ali não estavam representados.

Fizeram isto sempre alegres, e sempre confiantes uns nos outros e em si mesmos, comportamento em parte condicionado por Diomira em si, e que se iria perpetuar pelas gerações futuras. Esses primeiros habitantes de Diomira tiveram a capacidade, herdada pelos seus descendentes, de conviverem com dezenas de outras fés, sem perderem a sua. Conseguiram pensar na cidade como um todo, sem se esquecerem que são únicos. Tiveram a audácia de aceitarem e respeitarem sessenta culturas diferentes, sem se desviarem da sua própria.

Foi essa… capacidade, essa habilidade, seja o que for, que permitiu a Diomira crescer e erguer as suas sessenta cúpulas de prata, que agora brilham na minha direcção, e em todas as direcções, lançando a sua luz por todo o lado, sem no entanto sair do mesmo sítio.

Essa cidade, essa Diomira refulgente e multi-cultural, foi a primeira cidade que encontrei, desde que iniciei a minha viagem, saindo da minha própria cidade. Que sorte a minha, encontrar uma cidade que brilhe tão intensamente, ao longe, qual farol a indicar-me o caminho! Apressei as minhas pernas cansadas, desejoso de chegar a Diomira antes de o sol se pôr, para não ter que confiar apenas na minha capacidade de orientação, e me puder guiar pelo brilho da cidade.

Mas, azar o meu, os dias já tinham começado a encurtar, e o sol pôs-se, muito antes de eu chegar perto de Diomira. Resignado, lancei o olhar para cima, para o céu, para identificar as estrelas por cima de mim e continuar o meu caminho, seguro e sem medo de me perder. Procurei, pensei, lembrei, calculei, tudo isto de forma automática, virtude da prática, e encontrei a rota que me levaria à cidade.

Desviei o olhar do firmamento, lentamente, para a direcção de Diomira, e constatei, com surpresa, que não precisava de ter feito tantos cálculos.

A cidade ainda refulgia.

Refulgia, mas com um brilho diferente. Já não era o tom alaranjado, de um sol poente, era um prateado majestoso, a raiar o branco, que contrastava com o negro céu atrás e acima da cidade. E constatei também que devia ter andado mais depressa do que pensava, ou então que tinha andado enquanto calculava, sem dar por ela, pois Diomira estava a uns meros duzentos passos de mim!

Corri, ansioso, e entrei pelos portões da cidade, mesmo a tempo de ver as primeiras lâmpadas multicores a acenderem-se, por cima das lojas de peixe frito. Desencadeou-se assim um processo parecido às peças de dominó a cair: acendeu-se lâmpada atrás de lâmpada, em rua atrás de rua, criando um autêntico arco-íris das mais variadas cores, cada uma única, mas formando um belo conjunto uniforme, no todo.

Era essa a visão dos diomerenses, desde que fundaram a cidade. Não a de que uma população é formada por vários indivíduos, mas a de que vários indivíduos formam uma população. Uma diferença subtil, apenas formal, na realidade, mas que mudava tudo.

Caminhei lentamente pelas ruas de Diomira, e observei os seus habitantes a saírem das casas, a cumprimentarem-se calorosamente, a conviverem calmamente. Reparei que as diferenças entre as várias culturas se tinham esbatido. Os traços particulares de cada raça tinham sido como que erodidos pela passagem do tempo, não se conseguindo dizer onde ficavam as raízes de algum dos habitantes.

Estes não eram os primeiros diomirenses, uma amálgama heterogénea de culturas e raças, ainda que unidos. Estes eram os verdadeiros diomirenses, descendentes desses primeiros, e que tinham criado a sua própria raça, a raça de Diomira, mas que tinham mantido, apesar disso, os costumes da sua raça original.

Só soube isto porque à medida que eu caminhava pelas ruas de Diomira, pude ver como cada habitante procurava uma estátua de bronze em particular, e fazia as suas orações conforme a cultura a que devia ter pertencido, e que, afinal de contas, ainda pertencia. Vi diomirenses ajoelhados, lado a lado, de cabeça erguida e braços abertos para uma estátua, bem como diomirenses calmamente sentados, a formarem um semicírculo em redor de outra.

E vi então a mais bela construção de Diomira, um teatro de cristal, com paredes transparentes, que me permitiram olhar lá para dentro, e a quem estava lá dentro olhar cá para fora. Havia uma peça a ser representada no palco, mas havia pessoas no público viradas em todas as direcções. Tanto observavam os actores, como as pessoas que passavam, através das límpidas paredes.

Admirei aquela magnífica construção durante muito tempo, durante muito tempo mesmo, e a única coisa que me tirou daquele torpor foi um silêncio absoluto que se fez sentir na cidade. Olhei em volta, e vislumbrei vários rostos expectantes e sorridentes. Vi as estátuas de bronze, tal como já tinha visto em muitos outros sítios, e vi as cúpulas de prata, usuais nos mais variados pontos do mundo. Até mesmo aquela magnífica construção, aquele teatro de cristal tinha parentes, mais ou menos afastados, espalhados por todo o lado.

Reparei nesse momento que todas as cabeças se encontravam viradas para o mesmo lado. Virei-me eu também, e vi uma mulher a sair por uma portada para um terraço, a olhar para toda a Diomira, e a soltar um grito: uh!

Grito de guerra, ou grito de paz? Grito de festa, de certeza, pois todos os diomirenses começaram a dançar e a cabriolar por todo o lado, misturando danças de todo o lado, e inclusive arrastando-me com eles, e fazendo-me dançar, sem saber os passos, coisa que não importava, pois não haviam passos definidos. Só precisei de sentir a felicidade deles, e de dançar e cantar com eles, deixando-me ir, deixando-me fluir, deixando misturar a minha própria cultura com as dezenas de culturas dos diomirenses, que não passavam, afinal de uma única.

Dancei e cantei, convivi alegremente, comi com os diomirenses, e diverti-me como há muito não me divertia. Foi só quando os primeiros raios de sol apareceram no horizonte, que os diomirenses se acalmaram, e se mostraram cansados, tal como eu estava. Daí até pararem completamente, ainda o sol subiu alguns metros no horizonte, mas quando isso finalmente aconteceu, um som percorreu toda a cidade. O canto de um galo.

Procurei-o com o olhar, e fui dar com ele no cimo de uma torre, uma das mais altas de Diomira. Tinha penas amarelas, aliás, douradas como se fossem feitas do mais puro ouro, e cantava a bom cantar, enchendo a cidade com o seu estrépito, ecoando pelas ruas, embatendo nas cúpulas, contornando as estátuas, e entrado pelo teatro de cristal adentro.

Os diomirenses recolheram às casas, e só nessa altura me apercebi de algo. Que tinha acabado de ter a noite mais feliz de toda a minha vida, e que nunca nada se lhe assemelharia. Oh!, como eu invejei, nesse momento, todos aqueles que apenas pensavam terem tido uma noite assim, e que eram verdadeiramente felizes, pois eu tinha acabado de a ter, e enfrentava agora a dura percepção de saber que já tinha encontrado a verdadeira felicidade, mas que a ia perder, para todo o sempre.

Oh!, como eu os invejei!

sábado, 8 de agosto de 2015

Escadas de memória


Miguel ainda não sabe o que são umas Escadas. Tem vivido a sua vida da forma mais tranquila possível. Normal e aborrecido, até. Gosta de desporto, mas não demasiado, gosta de mulheres, mas não demasiado, gosta de comer, mas não demasiado, enfim, uma autêntica personificação do tédio.

Aquilo que o espera, no entanto, é grande. Muito, mas muito grande. Ele que toda a sua vida subiu e desceu escadas como se nada fosse, vai ter que enfrentar umas Escadas. A primeira pessoa a fazê-lo em vários séculos.

Só que ainda não sabe. Sente que se passa qualquer coisa, já há algumas semanas, mas não compreende o quê. Pensa sempre em algum tipo de doença (Miguel é, obviamente, hipocondríaco, mas não demasiado), e nunca em mais nada. Nunca sequer pensou em nada místico: desde que se lembra que nem é religioso, nem agnóstico nem ateu nem nada; está-se nas tintas.

Mas hoje foi diferente. Hoje sentiu o que tem sentido, e ignorou como de costume. Foi-se deitar, adormeceu rapidamente e fez algo que não se lembra de alguma vez ter feito: sonhou. Viu umas escadas com uma cor que não consegue descrever, uma geometria que não consegue compreender e um fim e um começo que não conseguiu ver. E na mesma imagem, uma mulher, a morrer lentamente, de olhos baços e coração lento.

No sonho, Miguel não fez nada. Ao acordar, deu um grito. O suor escorria-lhe livremente pelo corpo todo. Levantou-se, foi à casa-de-banho para se limpar, mas parou antes de atravessar a porta. À sua frente tinha umas escadas. Na realidade, umas Escadas, mas ele ainda não sabia isso.

Piscou os olhos e elas desapareceram. Da sua visão e da sua memória. Miguel entrou na casa-de-banho, lavou-se, sem se lembrar muito bem do porquê de estar naquele estado, e voltou-se a deitar. Dormiu descansado o resto da noite.

E agora, está à espera. Mas não o sabe.


quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Escadas para todo o lado



Sandra tem acordado todos os dias, desde que se lembra. Quando se tem um tumor no cérebro do tamanho de uma bola de golfe, isso é uma vitória. Fraca, constantemente enjoada e deprimida, mas acordada.

Os médicos deram-lhe algumas semanas de vida, quando a diagnosticaram, mas ela já passou os três meses desde aí. É uma lutadora, a Sandra, incapaz de aceitar que vai morrer mais cedo do que alguma vez tinha imaginado. Luta com toda as forças contra o cancro que lhe consome a vida, mas é lutar sozinha contra um exército.

Quem a conhece não pode fazer outra coisa que não vê-la a definhar. O cabelo que cai, a pele que amarela, os lábios que secam, os olhos que embaciam, a Sandra que se perde cada vez mais numa teia de dor de sofrimento e se esquece de ser quem era, a intrépida jornalista com sentido de humor.

Era Sandra Faria, agora é Sandra. Era jornalista, agora é doente. Tinha um emprego, amigos e uma vida feliz, agora tem cancro. Não era casada nem andava enrolada com ninguém, mas sempre disse que era difícil encontrar a mulher certa para essas coisas. Saía à noite para se divertir, e de vez em quando engatar uma outra rapariga jeitosa, agora sai à noite até à casa de banho, para ir vomitar.

Tudo isto, e continua a acordar todos os dias, com a mente intacta, ainda que aprisionada. Já nem sabe porque é que se recusa a morrer, mas é o que faz. A afiada gadanha pende-lhe sobre o pescoço todos os segundos de todos os dias, e Sandra, débil, quase incapaz de se mover, consegue mantê-la longe. Tão longe quanto possível.

O tumor não cresceu de um dia para o outro, mas foi de um dia para o outro que foi descoberto. Num dia uma forte dor de cabeça numa viagem com amigos, no outro um médico a dizer-lhe para se despedir da família. Sandra pediu uma segunda opinião, e uma terceira e uma quarta, e por muito que sentisse que devia continuar a pedi-las até alguma ser do seu agrado, ouvir quatro vezes "algumas semanas de vida, na melhor das hipóteses" foi o suficiente para ficar convencida.

Dedicou alguns dias a tratar dos seus assuntos, disse aos amigos mais próximos o que se passava, explicou aos médicos que tinha pouca família e que a que tinha, não lhe interessava, e começou os tratamentos.

Três meses depois, continua a acordar. Continua viva, contra todas as esperanças clínicas, e por muito que os dias lhe pareçam tão iguais e sofridos que se ache no Inferno, ou pelo menos em algum tipo de Purgatório.

"Podias ter ligado."

A voz, grave, levemente rouca, dura, só pode ser de uma pessoa.

"Pelo menos ao teu pai, Sandra."

Ela não quer saber. Não o quer ali. Mas também não tem forças para o mandar embora. Olha para ele, mortiça e baça, deixa-se embalar pelos vários apitos hospitalares que lhe enchem o quarto e fecha os olhos. Ele, Luís Faria, pai, não chega a entrar no quarto. Percebe a mensagem e vai-se embora. Só chora no carro, durante alguns segundos, e depois faz por esquecer a filha que nunca quis e que já não o quer.

"Como é que te sentes?"

A voz, grave, nada rouca, amável, pode ser de qualquer pessoa.

"Não me conheces, mas... Temos que ter uma conversa importante."

Ela não quer saber. Nem sabe se o quer ali. Mas também não tem forças para o mandar embora. Abre os olhos e vê-o, jovem, com uma cicatriz profunda a começar no canto direito dos lábios e a descer pelo pescoço abaixo até às suas costas.

"O meu nome é Miguel."

Não o conhece. Mas a nuvem que lhe tolda a mente começa a dissipar-se lentamente. Os olhos brilham uma vez mais e ela é toda ouvidos. Só não sabe é porquê.

"Tens sonhado com escadas?"

A pergunta é estranha, mas a resposta é óbvia. Quase que se lembra de uma grande casa banhada pelo Sol e com escadas de pedra. Pensa e vê um padrão, um que se repete todas as noites desde que sabe que tem uma bola de golfe a matá-la lentamente, por dentro. Escadas, um bocadinho por todo o lado e que vão dar a todo o lado. Sem saber como, nem porquê, ainda a estranhar aquele homem, mas a confiar em Miguel, Sandra responde.

"Sim."
Rui Bastos. Com tecnologia do Blogger.